Cheguei num final de tarde de um domingo do início de janeiro deste 2022. O meu velho Pai não me reconheceu, como, aliás, não reconhece mais ninguém. Olhou-me de cima abaixo, como que perscrutando no fundo da mente uns trapos de lembranças e quedou-se interrogativo, com um ar profundamente triste.
Olhei para o seu corpo magro, cabelos ralos, ainda com alguns fios pretos e bigode bem aparado, quase totalmente branco, mas com boa aparência, de quem vive sob os cuidados da Filha caçula.
No seu exame visual, ao qual submeteu-me, chegou aos meus pés e exclamou, quase gritando, numa voz nervosa: "oxente, de chinelo!!". E soltou uma alta e descontrolada gargalhada, como a grasnar, caindo, em seguida, num mutismo constrangedor, num alheamento total, sério, a boca meio aberta com uma prótese inferior quase a lhe saltar, como se não houvesse mais ninguém ao seu redor. A minha Irmã caçula ficou sem jeito, mexendo nas mãos, a Cuidadora ruminou algumas palavras de consolo e passou-lhe a mão na cabeça, e eu me segurei para não chorar.
Recife, 07.02.2022, 21;29 horas.
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